Neoindustrialização: medidas do governo podem tirar indústria brasileira do atoleiro?

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“Precisamos de uma política industrial inteligente, para o novo momento da globalização.” Com essas palavras, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e o vice-presidente Geraldo Alckmin (PSB) deram a senha, em um artigo publicado em 25 de maio de 2023 (Dia da Indústria), no jornal O Estado de S. Paulo, para aquela que viria a ser uma das prioridades do terceiro mandato do petista no Palácio do Planalto: a chamada “neoindustrialização” do Brasil.

“Mesmo países mais liberais investem em conteúdo nacional: seja para a construção de cadeias produtivas mais resilientes a choques, como o que provocou escassez de insumos na pandemia; seja para dar conta do imperativo da mudança climática, a corrida espacial do nosso tempo”, argumentaram no texto.

Palavra de ordem em discursos de Alckmin, que também é ministro do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, a neoindustrialização, em linhas gerais, é o processo de modernização do setor industrial com base em investimentos em tecnologia e inovação, no compromisso com a sustentabilidade e o meio ambiente e na integração com cadeias produtivas internacionais. O desafio é enorme e, para que saia do papel, a indústria brasileira terá de emergir do atoleiro no qual está mergulhada há décadas.

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Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a contribuição da indústria de transformação (que reúne todo o setor manufatureiro) para o Produto Interno Bruto (PIB) era, em 2020, de pouco mais de 11% – o menor índice em 70 anos. Já a participação da indústria geral – que inclui a indústria extrativa, construção civil e atividades de energia e saneamento – não passava de 20%, também uma mínima histórica.

A desindustrialização do país é um fenômeno antigo, observado pelo menos desde os anos 1980. Entre os principais problemas apontados por especialistas e integrantes do setor, estão o chamado “custo Brasil”, que envolve a elevada carga tributária, a burocracia, a precariedade em infraestrutura, o alto custo de energia e os efeitos da crise sanitária durante a pandemia de Covid-19. O resultado, na prática, é que a indústria brasileira vem “andando de lado” (quando não para trás) e não consegue deslanchar.

‘Neoidustrializar’ o país não é tarefa para um único governo. O setor industrial vem acumulando perdas ao longo de 40 anos, é um processo de longa data”, afirma o economista Claudio Considera, coordenador de Contas Nacionais do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV Ibre) e um dos responsáveis pelo Monitor do PIB da FGV. “O que é assustador é que a produtividade atual da indústria de transformação é apenas 80% do que era registrado na década de 1980. A produtividade não apenas não cresceu nesse período. Ela caiu.”

Nova Indústria Brasil

Em janeiro deste ano, foi lançado o Nova Indústria Brasil (NIB), que oferece subsídios, empréstimos com juros reduzidos e ampliação de investimentos federais, além de incentivos tributários e fundos especiais para estimular a indústria. A maior parte dos recursos (R$ 300 bilhões) virá por meio de financiamentos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) e da Empresa Brasileira de Pesquisa e Inovação Industrial (Embrapii). Os financiamentos do BNDES destinados à inovação serão corrigidos pela Taxa Referencial (TR), que é mais baixa que a Taxa de Longo Prazo (TLP).

“Se você analisar com atenção, é um plano extremamente modesto. Basta ver o que outros setores têm de recursos à disposição, em condições muito mais favoráveis”, afirma o economista-chefe da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), Igor Rocha. “Hoje, a indústria paga a maior carga tributária [algo em torno de 42%, ante 20% do setor de serviços e 12% a 15% do agro] e a maior taxa de juros. Não temos um Plano Safra [instituído em 2003 pelo Ministério da Agricultura para fomentar a produção rural], não temos LCI [Letra de Crédito Imobiliário] ou LCA [Letra de Crédito do Agronegócio], não temos CRI [Certificado de Recebíveis Imobiliários] e CRA [Certificado de Recebíveis do Agronegócio], não temos debêntures de infraestrutura… Isso tudo é subsídio, sejam explícitos ou implícitos”, compara.

“As próprias linhas de financiamento do BNDES são todas a custo de mercado. A única linha subsidiada é a da inovação, que, na prática, não é direcionada especificamente à indústria. É uma linha para a economia em geral”, prossegue Rocha. “Dado que é uma linha de inovação e o setor mais inovador da economia é a indústria, pressupõe-se que a maior parte dos recursos vá para o setor. Mas não é uma linha exclusiva.”

Programa Mover

Outra aposta do governo é o Projeto de Lei (PL) 914/24, que cria o Programa de Mobilidade Verde e Inovação (Mover). A iniciativa prevê créditos financeiros para empresas que invistam em pesquisa, desenvolvimento e produção tecnológica, e que também contribuam para a descarbonização da frota de carros, ônibus e caminhões. Ao todo, devem ser oferecidos créditos no valor de R$ 19,3 bilhões até 2028, que podem ser utilizados para o abatimento de impostos federais. O programa estipula a criação do Fundo Nacional para Desenvolvimento Industrial e Tecnológico (FNDIT), com recursos a serem destinados ao setor de autopeças e outros segmentos da cadeia automotiva. O texto ainda não foi analisado pela Câmara dos Deputados.

“Algumas medidas são de curto e médio prazo e outras, mais de longo prazo. Todas elas são essenciais para a retomada da indústria no Brasil. O diálogo com o setor privado é importante porque essas medidas precisam chegar à ponta, que são as empresas”, afirma Samantha Cunha, gerente de Política Industrial da CNI. Em março, a entidade entregou ao Congresso Nacional um documento com uma série de projetos considerados prioritários para o setor que tramitam tanto na Câmara dos Deputados quanto no Senado Federal (veja a lista completa aqui).

Cunha lembra que a indústria brasileira já esteve entre as 10 maiores do mundo, até 2014, e foi superada por países como Indonésia, Turquia, Rússia e México. “Estamos perdendo posições no ranking mundial dos produtores industriais. Hoje, somos a 16ª indústria no mundo. As consequências disso são o baixo crescimento econômico e o aumento das desigualdades. O país sofre com a falta de uma estratégia de desenvolvimento industrial e tecnológico de longo prazo”, observa.

Outro dado relevante, segundo o setor, é o efeito da industrialização sobre os empregos e salários no país. De acordo com dados da CNI, referentes a 2022, cada R$ 1 produzido pela indústria representou R$ 2,43 na economia como um todo (ante R$ 1,75 do agronegócio e R$ 1,49 de comércio e serviços). Grosso modo, os empregos da indústria pagam melhor.

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Depreciação acelerada

Em março, a Câmara aprovou o PL 2/2024, a proposta da “depreciação acelerada”, que ainda está pendente de análise pelo Senado. A medida concede incentivos fiscais na depreciação de máquinas e equipamentos novos incorporados por empresas de setores ainda a serem definidos. Trata-se, ao fim e ao cabo, de uma vantagem contábil que permite ganho de caixa nos anos iniciais, diminuindo a base de cálculo do Imposto sobre a Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ) e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) – na prática, a depreciação acelerada reduz a tributação das empresas no curto prazo.

Esse abatimento seria feito em até 25 anos, dependendo do tipo de bem, conforme ele deprecia. As cotas diferenciadas valeriam para máquinas, equipamentos, aparelhos e novos instrumentos comprados entre uma data a ser definida após a regulamentação do texto e o dia 31 de dezembro de 2025. Inicialmente, R$ 3,4 bilhões devem ser destinados ao programa. Um levantamento da CNI, divulgado em julho, mostrou que o maquinário da indústria brasileira tem, em média, 14 anos, e 38% dos equipamentos estão perto de ultrapassar ou já ultrapassaram esse ciclo de vida.

“É normal que a indústria perca peso ao longo do tempo e os serviços ganhem relevância. Muitas pessoas, hoje, não querem, necessariamente, mais uma televisão dentro de casa nem comprar mais um carro. Elas querem passear mais, fazer turismo, sair para jantar… querem serviços, de forma geral”, explica Claudio Considera, da FGV. “O que se pode fazer é evitar que o panorama continue se deteriorando. Isso deve ser feito não somente dando incentivos ou tornando o produto mais barato. É necessário identificar os setores estratégicos e apostar em investimentos em inovação. É preciso pôr a questão da tecnologia em primeiro lugar.”

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e o vice-presidente Geraldo Alckmin (PSB), ministro do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, durante cerimônia de assinatura de atos relacionados ao Programa Mover, no Palácio do Planalto (Foto: Ricardo Stuckert/PR)

Indústria automotiva

Em meio a tantas dificuldades para a retomada industrial do país, uma maré positiva parece ter contagiado o setor automotivo entre o fim do ano passado e o início de 2024. Depois de um longo período de crise e incerteza, com uma série de paralisações em gigantes como Volkswagen, General Motors e Mercedes-Benz, além da saída da Ford do Brasil, algumas das principais montadoras decidiram retomar investimentos, impulsionadas pela queda da taxa de juros, pela aprovação da reforma tributária e pelos próprios programas do governo federal.

Os aportes totais dessas companhias devem chegar a R$ 125 bilhões até 2033, o que representará o maior volume de investimentos no setor já registrado no país, de acordo com a Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea). Apenas em 2024, as companhias anunciaram mais de R$ 60 bilhões para o aumento da produção e desenvolvimento de tecnologia.

“A indústria automobilística tem uma particularidade em relação aos demais setores: é formada por empresas globais. Essas companhias estrangeiras têm uma capilaridade de movimentação de recursos que o resto da economia não tem. Elas conseguem fazer investimentos a partir do direcionamento dado pelo Mover, até porque a descarbonização do setor automotivo é um processo global”, explica Igor Rocha, da Fiesp.

Apesar do maior otimismo em relação à indústria automotiva, o ciclo de redução da taxa básica de juros (atualmente em 10,75% ao ano, após 6 quedas consecutivas de 0,5 ponto percentual) ainda é insuficiente para fomentar todo o ecossistema industrial, na avaliação de Samantha Cunha, da CNI. “O ritmo da queda está aquém do possível, diante da redução que já se observa da inflação. Os juros nesse patamar são totalmente desfavoráveis ao investimento produtivo porque encarecem o crédito e o investimento. Tornam mais difícil para o setor produtivo fazer as mudanças necessárias, como modernização do parque produtivo e a redução dos impactos ambientais. Todas essas são mudanças para as quais é preciso ter acesso ao capital. O crédito tem de ser mais favorável”, diz.

“Enquanto a indústria não tiver uma carga tributária igual aos outros setores e tiver de pagar a maior taxa de juros da economia, sou muito cético em relação à reversão do quadro atual”, aponta Igor Rocha. “É claro que a política industrial tem de ser feita. Mas, quando você tem um pano de fundo tão desarrumado, no que diz respeito aos pilares fundamentais para que qualquer política pública dê certo, fica muito mais complicado. Acaba virando algo paliativo ou uma política meramente compensatória.”

A reforma tributária, aliás, foi uma pauta abraçada pela indústria, amplamente apoiada por CNI, Fiesp e outras entidades do setor – que a consideram uma grande aposta para ganhar competitividade. Estimativas apontam que a reforma pode alavancar o PIB do Brasil em cerca de 10% no período de 15 anos. Apesar de não reduzir a carga tributária para a indústria, a reforma simplifica o complexo regime tributário do país, o que é positivo para o setor, e também ajuda com o fim da cumulatividade, resultando em desonerações para investimentos e exportações.

O que diz o governo

Procurado pela reportagem do InfoMoney, o Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC) afirma que o NIB “busca fortalecer a indústria em áreas estratégicas, aumentar a produtividade e a competitividade das empresas brasileiras, ganhar novos mercados, atrair investimentos externos e gerar mais e melhores empregos”. A pasta menciona, ainda, “uma série de medidas sendo tomadas ou elaboradas nas áreas de regulação, facilitação de investimentos, comércio exterior, desburocratização, melhoria do ambiente de negócios e redução do chamado custo Brasil, sendo a principal delas a reforma tributária já aprovada no Congresso”.

De acordo com o ministério, é possível reverter o processo de desindustrialização no país “com uma política consistente e perene que invista na transformação digital e na transição ecológica, com potencial para fortalecer o mercado interno e aumentar as exportações de manufaturas”.

A pasta reconhece, por fim, que a indústria brasileira “perdeu competitividade e envelheceu”, apesar de se destacar em vários setores. “Questões políticas e econômicas internas também contribuíram para acelerar o processo de desindustrialização do país. Não existe caso no mundo de uma indústria que tenha se desenvolvido sem apoio e investimentos do Estado. É isso que a NIB tenta retomar”, diz o MDIC.

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